segunda-feira, 18 de maio de 2020

quinta-feira, 16 de abril de 2020

A construção

https://www.youtube.com/watch?v=LV43-sbBVRU&t=126s

    
                                       A construção
                                                                           Angela Carneiro

   Rosa tampou os ouvidos com as mãos e o travesseiro.  Então, pegou as letras do medo  e com elas ergueu as paredes.
        O medo subiu em degraus que fez em caracóis até a água-furtada.
        Bateu a porta com força.  Lá,  um espaço para sua solidão cheio de abraços.
        Na água-furtada, sempre chovia, e os pequenos passos  da chuva ritmavam os outros passos que ouvia.  A mãe na cozinha, panelas em festa cheirosa. Ouvia o abrir da porta da despensa. Potes de barro com doces, cheiros misturados, todos os mantimentos do mundo! Havia até máquina de  refrigerantes!
        Ah, a casa era grande! Lá, tudo podia, tudo havia.
        No sótão, tão só, seus brinquedos e lápis de cor e livros de figuras, e cadeirinha de balanço do seu tamanho. Uma escrivaninha de tampa, com papéis, lápis  e borrachas cheirosas, pilhas de revistinhas! Um vidro grande cheio de bolas de gude! E um bebedouro de água gelada!
        Pegou a sede, deitou na rede e abriu uma varanda e cantou a música da avó louca que antes de ficar louca cantava para ela dormir.
Fiz a cama na
varanda me
esqueci do cobertor
deu um vento na
roseira
ai meus cuidados me cobriu toda de flor!
E tanto repetiu como sempre fazia. Repetia e pensava na cama feita na varanda, nas pétalas macias e cheias de  perfume da flor do seu  nome. Cantava baixinho pra ninguém em fúria ouvir e ela não ouvir a fúria de ninguém.  E havia um piano para acompanhar.
            Pegou  a música e compôs um quarto de brinquedos.
            Um trem de ferro sempre em movimento a  levava para todo o mundo!  Um teatro de fantoches e marionetes, e uma bicicleta azul. O colo do urso de pelúcia enorme, destamanho!
            Pegou no sono e lá dormiu, quente. Pois agora nevava, era Natal no mundo dos cartões de Natal  e ela ouvia guizos. Os guizos ficaram mais altos, cada vez mais nítidos, um chegando a tocar na sua cabeça, frio, metálico, e mais a cabeça cobriu com o travesseiro, e sentiu que a dor doía, que a construção podia ruir, mas não deixou, e seu coração se encheu de força.
            Pegou a emoção e fez o quarto da televisão. Enorme! A televisão, não o quarto. Com ar-condicionado e escuridão de cinema. E tudo se abria ou fechava bastando um simples apertar de botão. Era o quarto das tomadas, da pipoqueira elétrica, do computador, de todos os discos. Parecia até uma nave espacial!
            Pegou o  espanto e com ele fez os cantos.
            Pois a casa dela  tinha cantos. Muitos cantos! O  preferido  debaixo da escada e brincava de esconde-esconde. Lá , ninguém a achava, nunca! Por mais que procurassem, por mais que quisessem, lá era do tamanho de seu corpo dobrado, protegida.
            Pegou a traquinagem e destrancou o escritório das conversas sérias. Conversas, apenas, talvez até brigas que brigar é normal. Mas sem as panelas batendo, sem os gritos, sem os gritos, sem os gritos... 
            Um lugar  proibido; um antepassado emoldurado na parede de papel de enfeites dourados. Cortinas cerradas de veludo vermelho-vinho. Uma lareira apagada. Mas  lá entrava e espiava. Garrafas de cristal, livros de couro, tudo de couro! Uma cabeça de bicho, uma estátua de bronze. Tudo quieto, quieto, parado no tempo dos brocados e das poeiras.
            Pegou o silêncio e o levou para seu quarto. Um quarto só para ela!
Não tinha Tereza, não tinha Vanderlei, não tinha Juliano nem Lucia Maria. O quarto era dela, só dela!     As gavetas nunca fecham, os sonhos escapolem por suas frestas. Nada de chaves ou trancas, mas sim um cofre com segredo numérico: tec-tec-tec direita, tac-tac-tac esquerda, tec-tec-tec direita. E pronto! Ele se abre com os segredos que não vai contar nunca pois segredos não se contam. A cama era só dela, grande, macia, onde se pulava alto. E os travesseiros enchiam de cheiro de limpo e de nuvem o conforto. Podia, do quarto, ver o sol em tiras, ver as sombras do mundo. A janela tinha cortinas que voavam se ventasse, e mudavam de cor com a luz.
            Pegou a alegria dos segredos e plantou um jardim para as borboletas. Um jardim com piscina e trampolim!
 E podia estar sempre lá. Antes, descia ao porão, tanto pó! Lá estava o baú da avó. E coisas antigas contavam histórias de outros tempos. E este segredo ela conta, pois é bom demais pra guardar: no porão há uma passagem secreta... Verdade! Só ela sabe onde fica, é preciso estar atento, olhar com cuidado, pisar no local certo para abrir a parede  giratória que  leva para todos os caminhos. Nos caminhos, as paredes são de pedras, e a luz é feita de fogo, e do caminho que vira estrada se quiser, que vira trilha se quiser, uma luz aparece deixando ver a grama.
      E o caramanchão! E o balanço na árvore! Voava pelo balanço e lá de cima via o muro de pedras contornadas de verde, e flores vermelhas  espiando. E lá estava seu cavalo comendo capim, e relinchava  sorrindo assim, do jeito que cavalo sorri.
      Pegou a liberdade e fez um portão. Um portão de troncos e escreveu em cima: Bem-vindo! e correu pela grama, e cheirou as flores, pois lá a tarde é de sol.
       Se não for susto ou medo, convida o brinquedo para acampar. Uma cabana é lunar.Cabana é espaço para dois. E a noite é sempre estrelada com cadentes riscando o céu.  Mas agora era dia, e as flores cheiravam, todas elas, com cores vivas, e ela cantava a música da Linda Rosa Juvenil, pois era seu nome, Rosa: A linda Rosa juvenil, juvenil, juvenil, vivia alegre no seu seu lar, no seu lar..
- Mãe, cadê a Rosa?
- O que é, Tereza?
- A Rosa, mãe. Cê viu a Rosa?
A mãe colocava a colher de sopa no olho machucado pra ver se a dor passava. Se tivesse bife em casa, botava bife, depois lavava e comia. Mas não tinha, e a dor da pancada doía. Os olhos da filha Tereza mais arregalados que o círculo da frigideira, mais que nunca, mais que em todas as brigas.
-Deve lá, escondida embaixo do lençol, como sempre que o pai chega e bota o mundo abaixo. Lá, no alto do beliche.
- não mãe, vem ver...
 - Depois, filha, depois..
Pois a dor doía, e ainda tinha roupa pra lavar, e limpar o chão que a panela do feijão tinha derrubado.
- Eu ajudo, mãe...
Tinha quatro anos, Tereza, só quatro. Mas já varria e limpava e olhava os gêmeos . E dessa vez o pai tinha batido forte e derrubado o feijão. E a pequena, magrinha, tão pequena, pegava o balde do seu tamanho, e o pano.
- Mãe, cadê a Rosa?
É mesmo, já tinha acabado a briga, agora o pai não voltaria tão cedo pra casa, Rosa sabia disso, já  estava acostumada, mas não vinha ver, não vinha ajudar a botar as coisas no lugar. Cadê a filha?
- Rosa!- gritou a mãe. Rosa!
Devia ter saído. Vai ver que pulou a janela do barraco, ganhou rua, fugiu do grito. E Vanderlei que não chegava do serviço? Mas os gêmeos agora pediam peito.
Vanderlei chegou, o feijão novo aprontou, todo mundo comeu. Menos Rosa.  A mãe tinha medo de sair de casa no escuro, os tiros já começavam no céu, o aviso que a mercadoria do morro  tinha chegado.
E Rosa não voltava pra casa. Vai ver que foi pra casa de fulana..
O dia chegou com o ruído dos helicópteros da polícia em cima do morro. E as crianças embaixo do beliche fugindo das balas, escondendo Vanderlei. E Rosa não estava.
E mais uma noite passou, e mais um dia chegou. A mãe já podia procurar por Rosa. Vanderlei já tinha ido embora . Tereza tinha de ficar tomando conta dos gêmeos.
- Vai não, mãe, fica..
E os olhos negros redondos  molhavam de lagoa.
- Então, vamos todos juntos. Mas antes vou arejar o quarto que ontem choveu.
Abriu a janela que agora não tinha tiro no ar, e entrou o sol. E o lençol  foi quarar na janela mesmo, qual bandeira em dia de jogo.
- Mãe! Olha lá a Rosa!
O coração da mãe se alegrou: - Cadê, filha, cadê?
- Aqui, mãe, correndo nas flores do lençol..
A sombra foi preta, e a vontade de dar um tapa na filha pequena que parecia estar ficando doida que nem a avó tinha ficado.
- Pára de falar bobagem! Deus castiga!
- Olha, mãe! Olha aqui no lençol! Ela rindo pra mim!
A filha pequena pegava a ponta do lençol e mostrava pra mãe mas a mãe sacudia a cabeça, lembrava da mãe louca falando com os anjos e querendo andar nua , e cantando músicas de fantasmas.
- Olha, mãe, também quero ir lá!  Rosa! Me leva praí!- gritava a irmã para o lençol.
- Deve ser uma formiga, uma barata que você tá vendo...
- Olha a Rosa, mãe, vem ver!
A mãe resolveu olhar.
- Cruz credo! Valha-me Padre Santinho! Nossa Senhora Aparecida! Minha Iançã! Meu Iorubá!
Do meio das flores do lençol, Rosa acenava pra mãe, mandava beijos e sorria.
Rosa tinha  pegado a coragem como sua bagagem e saido  da casa. A casa no alto do beliche, onde sempre a esperava com seus cômodos.  A cada susto, medo, acostumara-se a erguer  suas paredes de travesseiro, cobrir-se  com seu teto de cobertor. Vasculhava seus cantos nas dobras, descobria  seus encantos, desvendando  seus mistérios, arrumando suas gavetas em caixas de fósforos, encontrando  ninhos, e nichos, e bonecos de porcelana. Fazia  o jardim com as florzinhas estampadas do lençol. E contava-se histórias para dormir. Depois acordava, ajudava a mãe, vestia o uniforme, ia para a escola, se tinha aula ficava, se não tinha, voltava. E ajudava a mãe, que tentava arrumar serviço de costura à mão, nem máquina tinha. O irmão já saído pro mundo. Às vezes no mundo ficava. E se o pai chegava rindo,  tinha de cobrir bem a cabeça para não saber da noite dos pais, e cantar baixinho pra não acordar os irmãos menores , mas alto o bastante para não ouvir os ruídos dos pais. Mas se o pai chegava com o fedor de quem perdeu, não ia ter cheiro bom de feijão que segurasse a mão pesada na mãe. Rosa corria e cobria a cabeça para não saber da briga. Vanderlei em casa também apanhava mas já batia, um dia até tiro deu mas não pegou. Cobria a cabeça e cantava baixinho , baixinho pra ninguém ouvir, mas alto bastante para não ouvir os gritos. E fazia de lá sua casa, de onde não queria sair, até dormir.
 Mas, dessa vez, Rosa não saiu.
O lençol, agora, não está mais no beliche. Está estendido de lado a lado , dividindo o quarto em dois,   para a filha ter um mundo grande para morar.